sexta-feira, 30 de julho de 2010

Cavalo Vermelho

A porta se abriu, a venda foi tirada e o menino de 10 anos foi atirado para dentro da sala pelo guerrilheiro.

Recobrando seu equilíbrio, o menino deu uma boa olhada no ambiente. Era um refeitório, e ele devia ser a única criança branca ali. As outras crianças conversavam alto, agitavam o lugar.

Não sabia como, mas saira de sua confortável casa em que vivia junto com a mãe, na União Soviética, para um país da África que ainda lutava suas guerras internas. Todos eram soldados: homens, mulheres e até crianças. Duas facções que disputavam aquele território de ninguém.

Era num refeitório de uma dessas facções que o menino agora se encontrava. Admirou a si mesmo por uns intantes. Mãos sujas, os cabelos ruivos-escuros formando uma pequena franja que caia sobre sua testa. No lado esquerdo do peito se encontrava uma pequena placa dourada com o seu nome. Dizia: "Borislav Kalashnikov".

No meio da baderna do refeitório, ele conseguiu encontrar uma mesa com lugares. Muitos lugares. Naquela mesa só um menino sentava. Estava concentrado em alguma brincadeira que envolvia seus dedões. De forma quieta, e até furtiva, Borislav se sentou num banco na frente do garoto. Imediatamente os olhos do menino desviaram de suas mãos, apoiadas na mesa, até o rosto de Borislav. Resmungou alguma coisa no seu dialeto, a qual o menino russo obviamente não entendeu. Após um tempo sem falar nada, Borislav arriscou a língua universal, que aprendera na sua antiga escola:

- Hm... ahm... inglês? Fala inglês?

Um tanto surpreso, o menino revidou:

- Pouco.

- Ahm... meu nome é Borislav. Boris. Boris, entendeu?

- Eu entendi. Eu sou o Zaki. Eu tava te perguntando o por quê de você ter sentado aqui.

- Ahm... - pensou um pouco antes de responder, enquanto olhava em volta. - era um dos lugares com pouca gente e eu queria sentar.

- Ah, então você é novo aqui?

- Sou.

- Isso explica. Ninguém senta comigo. Todo mundo tem medo de mim.

- Por que?

- Por que eu sou bom em matar gente. Mas eu também cuido das pessoas, mas muitas vezes se esquecem disso. Às vezes o pessoal me chama de Zaci.

- E o que que é "Zaci"?

- "Pai de todos".

- Ah... - Boris pensou um pouco antes de falar. - A gente chama isso de "Deus", daonde eu venho.

- E o que é isso?

- Eu te explico.

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O maior agente de transformação e mutação, responsável pela alquimia do mundo e do universo, sempre foi e sempre será o tempo. Em poucos minutos, naquele refeitório, os garotos se tornaram amigos. Ao longo de dois árduos anos, eles lutaram juntos, treinaram juntos e riram juntos. Eram melhores amigos.

Borislav aprendeu a atirar. Seu corpo franzino, de quando havia chegado, aos poucos tomava uma forma atlética. No começo, tudo o aterrorizava. Matar uma pessoa era um pesadelo. Mas o tempo o fez se acostumar. Cada bala disparada, cada vida tirada, tornava a próxima mais fácil; e logo a ideia de matar, antes tão repugnada, não o incomodava mais. A única coisa que ele sempre carregava em mente eram as famílias que ele destruía. Isso pesava em sua consciência. De fato, ele não era um exímio soldado, e não sabia como, em dois anos, não havia morrido. A maioria das crianças daquele dia do refeitório já não estavam mais com eles. A fome havia levado algumas e a guerra, as outras. Boris sempre fora muito cauteloso e sempre se dedicou muito a aprender a arte de atirar.

Zaki, por sua vez, tinha um instinto natural para aquilo. Saía da cobertura e corria através do campo, atirando e gritando. Nunca haviam acertado ele. Era imortal. Mas tinha um bom coração. Toda vez que um menino precisava de ajuda, Zaki prontamente ajudava, seja no campo de batalha ou em qualquer outra situação. Era o "pai de todos". Era definitivamente Zaci.

Mas o inevitável aconteceu.

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Tibuana-Seka era uma pequena aldeia pertencente à facção de Borislav e Zaki. Sobre o atual status do conflito, era possível dizer que a facção dos meninos estava ganhando, e que aquela pequena aldeia, que se localizava em um local-chave do conflito, era um alvo em potencial do inimigo.

Em uma manhã comum de um dia qualquer, um grupo de dez meninos e quatro adultos foram mandados para guardar a aldeia. Entre eles a dupla de meninos se encontrava. Boris e Zaki foram postos lado-a-lado e tinham vista para o oeste, para uma grande planície verde. Entre eles e a planície estava um pequeno muro de pouco menos de um metro de altura que podia ser usado como cobertura. Naquele dia, Zaki estava estranho e Boris estava preocupado com isso. Nunca vira seu amigo preocupado com um conflito. Os olhos daquele se encontravam fixos na planície. Ambos sabiam que um ataque poderia ser devastador já que o inimigo não pouparia esforços para dominar a pequena aldeia e que aquela mureta a sua frente não seria uma cobertura muito efetiva.

Borislav tentava analisar o rosto de Zaki, fixo na planície, quando este se jogou pro lado e gritou "cuidado!". Uma bala cruzou o ar e acertou na parede que ficava logo atrás deles. O menino russo, que havia se atirado no chão também, se arriscou a olhar por cima do muro e o que viu o fez arrepiar-se. Cerca de quarenta homens e alguns cães agora avançavam pela planície na direção dos garotos. Borislav se apoiou, sentado, no muro que dava pro aberto e via a chuva de balas rasgarem o céu acima dele e cravejarem a parede a sua frente. Todo o seu grupo, agora, se encontrava na murada e atirando por cima da cobertura. Um-a-um, seus companheiros foram caindo.

Quando poucos restavam, para a surpresa de Borislav, Zaki pulou o muro. Avançou contra o grupo de apenas trinta homens, agora. Conseguiu atirar em cinco. Quando se encontrava a uns dez metros do muro de onde pulou, uma bala o acertou, no ombro. E outra, pouco acima do umbigo. E outra. E mais outra. Os homens que restavam concentraram seu fogo no garoto e logo seu corpo fora destruído por inúmeros e impiedosos projéteis.

Lá fora, o mundo estava acabando. Guerras e mais guerras. Lá fora era o fim, mas dentro, dentro de Boris, alguma coisa estava começando. Enquanto o resto de sua inocência agonizava e lentamente morria, uma força sem nome, dó, e piedade tomava Borislav. Da mesma forma que o tempo tudo transforma, a guerra atua na mesma maneira. Em meio a tantas mortes e a tantos tiros, o menino se tornara surdo. Não mais podia ouvir o sopro de vida sussurrar em seus ouvidos. Jamais notou, mas sua expressão facial nunca mais fora a mesma.

Pulou o muro e começou a atirar.

Das trinta balas que o pente de sua arma guardava, todas acertaram um alvo. Logo, a planície verde era tingida por tons de vermelho.

Recarrega

Parado em meio aos corpos de homens que tinham pais, mães, esposas, talvez filhos, ele admirou o mundo a sua volta. Contemplou o que havia se tornado.

Olhou para os poucos adultos de sua facção, os mesmos que obrigavam meninos a lutar em guerras, e sentiu sua raiva reprimida se soltando. Mirou nos quatro homens e os executou com perfeição. Quando não se tem apego algum pela vida humana, matar se torna mais fácil e, de certo modo, mais prazeroso.

Observou o local deserto. Se manteve no meio da planície vermelha. Não era mais humano.

Era guerra.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Ás

Capacete limpo e lustrado em mãos, mente pesada, corpo vazio e espírito morto, o Ás observava aquilo que a tempos fora seu maior companheiro. Apesar dele sempre ter estado lá, poucas foram as vezes que ele parou para admirá-lo. Encostou de leve sua cabeça em seu companheiro veterano.

- Aí está você! Vamos lá, precisamos de ti lá em cima!

- Eu não vou. Eu to fora.

- Como assim tá fora?

- Eu to fora.

- Mas, Ás e teus sonhos? Sonhava em voar e voou. Sonhava em ter asas e as tem! O que aconteceu com teu sonho de ser herói?

O capacete foi posto no chão. Laços eternos sendo destruídos. Deixando o lugar, Ás olhou para trás e disse:

- Desculpe, velho amigo, - suspirou e voltou a falar - mas eu não sonho, mais.