quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Cidade de Dois Carvalhos

Dois seres daquela cidade tinham seus destinos cruzados.

Quando criança, Carvalho cresceu numa propriedade numa parte mais rural da cidade. Tinha boas memórias dos tempos em que podia passar o dia brincando nos vastos campos ensolarados, ou pulando poças d'água na estrada que ficava na frente de casa. Mas as melhores memórias ele dividia com outro Carvalho. Esse último, erguia-se altivo e magnificiente perto da casa do primeiro. O pequeno Carvalho lembrava-se dos tempos que passara pulando, correndo em volta do grande Carvalho.

Vivia sempre com a cabeça nas nuvens. Falava sozinho, com coisas e pessoas que não existiam. Falava comigo, às vezes.

Agora, o Carvalho estava na cidade. Sereno e calmo como sempre foi.

Caminhava de forma descompassada, arritmada. Corria, pulava, cortava caminho entre a multidão da mesma forma como fizera em algum momento de sua vida.

Chegou, deu oi pra recepcionista, elevador. Esperou, ainda com a perna dando pequenas batidas de inquietação no chão. Entrou, finalmente. Recuperou o fôlego. Nesse andar, entra o chefe, que o fará companhia até o décimo sexto andar.

- Relatório pra amanhã, né, Carvalho?

Bons tempos de criança em que podiamos brincar sem nos preocuparmos com relatório algum, certo?

- Certo.

Dito isso, sairam do elevador e Carvalho se encaminhou ao seu cubículo. Encontrara seu amigo, vizinho de cubículo, no meio do caminho.

- Pareca cansado, Carvalho. Vai uma aguinha aí?

Todo carvalho, por maior que seja, precisa de água. Isso inclui você. Vai aceitar esse copo d'água ou não?

- Sim, eu aceito sim.

- Grande Carvalho, sempre na correria, sempre firme e forte na luta! Já nos vemos cara, pode ficar com o copo. Eu tava indo logo ali no almoxarifado buscar algumas coisas, pego água na volta. Se bem que nem precisa, né? Com essa chuva forte, agora, se tá com sede é só abrir a boca!

É, é sim. Lá fora cai o mundo. Carvalho se mantém forte, enfrenta as tempestades e mais qualquer desafio que a natureza o faça. Nada pode derrubá-lo, pelo menos é o que ele pensa.

Senta em seu cubículo, faz seu relatório, pensa na vida. Se lembra daqueles tempos de infância, águas passadas que não mais movem moinhos?

- Bons tempos... - falou baixo e com um sorriso em sua face. Mas não importa. O Carvalho não importa. Nada disso importa, mais.

Nada mais importa porque Carvalho foi acertado por um raio, enquanto pensava em possibilidades impossíveis e se erguia forte e imponente perante a uma cidade que não se importa mais com Carvalhos.

domingo, 3 de outubro de 2010

Hurt

I hurt myself today
To see if I still feel

A cidade sempre ocupada estava viva lá fora. Era uma rua suja, com um tráfego incessante. Dos vários pequenos prédios sem graça alguma, um deles estava ocupado por uma figura débil que se deixava atirada em um canto.

I focus on the pain
The only thing that's real

Pouca luz era a que entrava no lugar. Estava tudo muito escuro. Um homem jovem ainda se encontrava no chão, jogado. Tinha um sorriso forçado e lágrimas o percorrendo.

The needle tears a hole
The old familiar sting
Try to kill it all away
But I remember everything

Virava seu rosto incessantemente. Imerso em seus delírios, ele se lembrava da vida que vivera. Lembrava-se de quando o falecido pai tocava violão na frente de casa pra ele, a mãe e a irmã ouvirem. De sua primeira briga, que ganhou. De sua primeira bicicleta, uma companheira que sempre estava com ele por boa parte de sua infância.

What have I become?
My sweetest friend
Everyone I know goes away
In the end


Agora, o tempo avança para sua adolescência. Ele vê pessoas indo embora, coisas indo embora. Sua bicicleta até lhe dá adeus. O pai não toca mais violão, não consegue. Está doente. Após um tempo, ele não resiste.

And you could have it all
My empire of dirt

I will let you down
I will make you hurt

I wear this crown of thorns

Upon my liar's chair

Full of broken thoughts

I cannot repair


Ele se sente incapaz. Mísero miserável e imóvel. Era um pedaço de nada que tentava se impor ao destino, ao tempo. Ele sente que deve se afastar das pessoas. Para não feri-las, para não se ferir. E ele se encontra em outro lugar.


Beneath the stains of time

The feelings disappear
You are someone else
I am still right here

Sua irmã entra e o vê no chão. Corre até ele. Ele ainda está imerso em seus pensamentos. Sorri e chora, lapsos de loucura. Ele a vê, agora. Pede desculpas a ela. Não soube ser tão forte quanto ela. Tinha que encontrar uma saída, qualquer uma. Sentia-e covarde, envergonhado por estar preso a sua sina e não ter escapatória. Ela não merecia isso. Ela havia se tornado uma pessoa madura, competente, capaz. Ele estava no chão.

What have I become?
My sweetest friend
Everyone I know goes away
In the end

And you could have it all
My empire of dirt

I will let you down
I will make you hurt

Ele pede desculpas pra ela. A seringa que antes estava em sua mão rola para longe. Se afasta dele e agora ele só tinha a irmã. Ela chora sobre ele. Lágrimas doces e puras, ao contrário das lamentáveis e sofridas dele. Ele se sente mais fraco.

If I could start again
A million miles away
I would keep myself
I would find a way

Enfim, ele descansa. Uma nova superstição adentrando algo bom e aconchegante. Ele fecha os olhos e deixa um embrace quente e suave. Antes de ir, não esquece de dizer: "desculpas e obrigado", para sua irmã. Ela o abraça forte, soluçando. As poucas forças dele se dissipam. Se ao menos ele pudesse recomeçar, mesmo tendo as mesmas chances, talvez ele se seguraria. Talvez ele conseguisse ser como sua irmã. Mas não é assim que funciona. Ele apaga, de vez.

E sua irmã ainda está o agarrando como se tivesse certeza de que quanto mais chorasse, mais chances ele teria de voltar. Por que perder um irmão assim? Quem merece perder alguém assim? E ainda, quem merece perder alguém? Ela se levanta, chama uma ambulância, entre soluços, e fica parada. Admirando todo o império do irmão, dado pela nem tão gentil seringa.