quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Cinza

Nicole acordou, mas manteve seus olhos fechados.

Ela não se lembrava muito bem das coisas. Não se lembrava do que havia acontecido, do porquê dela estar ali onde estava.

Sentada, mãos atadas em suas costas. Vendada. Boca cerrada, pela simples vontade de Nicole de ficar calada. Nada a impedia. Seja lá quem a havia posto naquela situação, não se importava com o silêncio dela. Não custava nada tentar.

- So-socorro!

Suas palavras ecoaram longe, o que a fez perceber que estava em um lugar grande.

- Socorro!

Uma porta se abriu, Nicole parou mais um grito que preparava-se pra sair e virou sua cabeça na direção do barulho que havia escutado.

- Quem está aí?

Ela agora ouvia passos. Passos vindos em sua direção. Quem era? O salvador ou a perdição? A resposta não importava, contanto que ela viesse.

Os passos pararam na frente de Nicole.

- Quem é você?

- Olá, Nicole. Você não sabe quem eu sou, mas eu sei quem você é. E você não é uma boa pessoa, Nicole. Com certeza, não é.

- Mas eu nunca fiz nada de errado!

- Talvez.

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Arquivo de Patrick Felcon, doutor em psiquiatria.
Paciente: X
Gravação #1

-
Eu sou o Dr. Felcon e estou aguardando a chegada de meu paciente. Ahm... ele parece não ter nenhuma identificação e foi acusado de dois crimes de homicídio e tortura. Parece ter confessado mais, mas não houve provas. Ele tem a estatura média, cabelos negros, olhos igualmente pretos. Físico em excelente condições. Não há lesões ou qualquer dano aparente, além de um cicatriz visível em seu pescoço, perto da jugular. Parece gostar da cor branca e... ah, ele chegou.

*Barulho de porta se abrindo, o som evidencia que uma ou duas pessoas carregam outra para dentro e a fazem sentar.*

- Olá. Tem algum nome pelo qual eu possa te chamar?

*Suspiro.*

- West. Pode me chamar de West.

- West? Esse é seu nome?

- Não.

- Ahm... pois bem, West. Como você está?

- Vivo. O senhor?

- Estou bem, bem. Sabe por que está aqui?

- O senhor quer me entender.

- Interessante escolha de palavras, West. Mas eu não quero apenas te "entender" eu quero te fazer melhor.

- Por que?

- Por que esse é o meu trabalho, fazer pessoas como você melhores, mentalmente.

- Melhores mentalmente ou melhores pros padrões da sociedade?

- Vejo que me entende, isso pode facilitar as coisas.

- Eu estou bem, doutor. Se a sociedade não gosta do quão bem estou, ela que venha e me prenda. Ou será que já fizeram isso?

- Vejo que não vai colaborar, certo?

- Acho que posso dizer o mesmo.

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Com a venda retirada, Nicole olhava da cabeça aos pés o seu sequestrador. Não era muito alto, era moreno. Era bonito, até.

- Trabalhou a vida inteira, atropelou pessoas, enganou algumas e mentiu pra mim. Você pode nunca ter cometido algum crime, mas isso não quer dizer que nunca fez alguma coisa errada.

Ele se aproximou um pouco mais do rosto dela. Seus olhos eram quase pretos, tom que nunca antes ela havia visto. Estava assustada.

- Não se importa nem um pouquinho com as pessoas não é? Nem com aquelas ao seu redor. Namora um cara prestes a ganhar um herança milionária. Costuma trair o cara. Nunca teve muitos amigos, não parece se importar. Problemas na faculdade, culpou colega. Acreditaram, expulsaram a pessoa ao invés de ti. Nada bom. Nada bom, mesmo. Você parece ser muito egoísta, pensa apenas em si mesma. Além da conta do que uma pessoa normal faria. Acredito que tenha algum tipo de psicopatia, talvez. O fato é que eu não gosto disso, Nick. Não gosto de você ficar atrapalhando a vida de outros, só se importando com a sua. Se vai passar a vida toda fazendo absolutamente nada, vivendo sua vida como se tivesse sido pré-programada e ainda estragando a vida de outros, é melhor que não viva. Não me leve a mal, Nicole, mas eu gosto disso. Gosto de... "limpar" o planeta de escória como você.

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Arquivo de Patrick Felcon, doutor em psiquiatria.
Paciente: X
Gravação #4

- Aqui é o Dr. Felcon e estou nesse momento prestes a começar mais uma sessão com o paciente sem nome. Acredito que nosso progresso esteja indo muito devagar. Parece ter ideias fixas. Tem uma lábia e uma capacidade de persuasão incríveis. Há alguns dias ele conversou com outro presidiário. O homem parece abalado. Guardo o tema para outra conversa. Ele chegou.

*Barulho de porta, uma única pessoa entra, puxa a cadeira e senta*

- Caro... perdão, como deveria chamá-lo mesmo?

-É Holmes.

- Como o detetive?

- Não... sim, como o detetive.

- Certo. Holmes, hoje vamos falar um pouco mais da sua infância. Como eram seus pais?

*risos*

- Meus pais, doutor? O que você quer saber sobre eles?

- Como eles te tratavam, como era o lugar onde vocês moravam.

- Bom, meus pais sempre me trataram muito bem. Compravam tudo o que eu queria, cuidavam de mim, se preocupavam... ou não. Me tratavam mal. Nem sei como consegui sobreviver.

-Como assim? Não consegue se lembrar direito do seu passado?

- Não é isso, doutor. É que se eu vou ter um passado, eu prefiro que eu possa escolher!

- Por que esse sorriso, agora? Será possível que não vai colaborar?

- Quer colaboração? Certo, doutor, vai haver colaboração. Me pergunte qualquer coisa!

- Ok. Pergunta simples. O que você acha das pessoas?

- Bando de robôs imbecis, não posso confiar neles.

- Acho que entendo o por quê de você achar elas robôs imbecis, já falamos isso em outra sessão, mas por que não confiar neles?

- As pessoas são muito peculiares. Você vê, quem geralmente erra, raramente perdoa. Não interessa quantas vezes você diga "tá tudo bem John, eu entendo" ou "eu te perdoo, Mary". Bem, John e Mary podem muito bem não te perdoar amanhã e no fim, eles estão sozinhos. Nós estamos sozinhos. Não podemos confiar em niguém, ou se confiamos, não podemos errar. Me entende, doutor?

- Me parece que essa pessoa é real.

- Mary era bem real. Pena que está morta agora. Não se preocupe doutor, eu não a matei.

- E o que a matou?

- Morreu quando percebeu o que havia se tornado.

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Nicole acordava cansada. Ao longo de 3 dias, o misterioso sequestrador a manteve com fome. Toda vez que este fazia uma refeição, a fazia na frente dela. A tortura era psicológica. A fome não era. Ouviu o estranho vindo de novo.

- O que você quer agora?

O homem puxou uma cadeira, a mesma que ele usava para comer, e se sentou na frente dela.

- Eu não sei, tenho pensado um pouco sobre você...

Nicole abriu um sorriso débil, mas largo. O fez parecer sinistro. Ela não tinha medo dele. Podia rir dele se soubesse o que ele faria se ela risse. Ele era imprevisível.

- Vai dizer que está apaixonado por mim? Síndrome de Estocolmo às avessas? Me ama?

Ele abriu um pequeno e simples sorriso com o canto da boca. Nicole desfez seu sorriso. A expressão no rosto dele era impassível.

Nicole era bonita. Olhos negros, cabelos castanhos e inteligente. Ela entendia, mas não do mesmo jeito dele.

- Amor é quando seu cérebro decide liberar endorfina quando se está perto de uma pessoa. Quando ele decide que você fará tudo por ela porque é ela com quem você deve copular, continuar a espécie. Não tem magia. Não existe "amor verdadeiro". Só tem o seu instinto animal te fazendo ser um animal. Nunca vai vir um cavaleiro galante te tirar da torre e matar o seu dragão, princesa. Romances assim não existem fora dos livros e dos filmes. Eu estava pensando em te poupar, mas acabei de ter uma ideia melhor. Entendo que sejas muito inteligente e quero por isso aprova.

Dito isso, foi buscar sua comida.

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Arquivo de Patrick Felcon, doutor em psiquiatria.
Paciente: X
Gravação #
9

- Aqui é o Dr. Felcon e eu não sei quanto tempo ainda consigo tratar ele. A maioria das pessoas que eu trato são pessoas que não entendem, pessoa que podem ser controladas dadas as circunstâncias. Ele não. Ele entende tudo perfeitamente. E faz questão de mostrar que não dá a mínima. Ele me assusta. Última semana a polícia precisou dele para algo. Ele voltou feliz. Me pergunto o que fizeram. Também na última semana, a única pessoa com quem ele havia conversado se matou. Coincidência? Eu sei que não. Ele atende por alias correspondentes a psicopatas famosos: Rosemary West, até H. H. Holmes. Eu vou encerrar isso hoje. Aí está ele.

- Olá, doutor.

*Suspiro, doutor tem sua voz alterada*

- Isso termina hoje!

- Vai atirar em mim doutor?

- Você é perigoso demais para estar vivo!

- Qualé, doutor. Abaixa essa arma. Abaixa essa arma e vá se deitar no seu sofá confortável. Ele fica na sua sala de estar em conjunto com sala de janta e cozinha. Tudo muito caro. Seus filhos são adoráveis, doutor. O pequeno até é meio espertinho. Chora pra ganhar atenção. A grandona já é burra feito uma porta. Ela está se envolvendo com drogas, sabia disso doutor?

- CALA A BOCA!

*A porta é aberta, homens entram apressados*

- Então é isso, até o homem mais correto pode se transformar num assassino dadas as circunstâncias? Você é como eu, doutor.

- Argh!

*Bang bang*

- O mais irônico disso é que eu poderia apostar que esses homens sempre deteram o paciente e não o doutor. É até engraçado.

*barulhos, alguém é arrastado. A porta daquele quarto se fecha. Silêncio*

- E você se esqueceu da pergunta mais importante: o porquê de eu gostar de branco.

*Risos*

- Agora que eu estava me divertindo?

Fim das gravações de Patrick Felcon.

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7 dias e Nicole mal sabia como estava viva. Quando ele tirou a sua venda, ela se deparou com um frango assado, no chão. Nada demais, mas parecia um sonho. Do lado dele, havia uma garfo e uma faca. Nicole não pensou duas vezes, se jogou sobre o frango e o devorou com as mãos cruas e humanas. Quando parou de devorar seu prato olhou pra cima e viu se sequestrador, em branco.

- Então é assim, Nicole. Dadas as circunstâncias, até o mais inteligente dos homens pode se tornar um animal.

- Por que? POR QUE FAZES ISSO?

- Por que é necessário. E eu gosto.

- Um dia... - ela agarrou a faca com discrição, não o suficiente pra escapar dos olhos atentos dele - você vai pagar pelo o que faz. Todo mundo paga. Um dia ou outro você vai para a prisão por que quer, por que a prisão é o confessionário de um pecador como você.

Ele a ouvia atentamente, entendia ela e, acima de tudo, sabia que estava certa. Sabia, também, que ela só o queria o distrair e que ela não ia deixar que ele vivesse.

Nicole se levanto e desferiu um golpe de faca a altura do pescoço dele. Passou perto e fez um pequeno corte em seu pescoço. Ele a segurou quando ela tentou um segundo golpe e a desarmou. Jogou ela no chão e parou ali em pé. Olhava pra figura dela, indefesa e fraca no chão. Foi até a porta e a abriu.

- Você está livre.

Nicole não pensou duas vezes, disparou até a porta e deixou seu sequestrador para trás.

Ele se sentou na cadeira que ela estava sentada e começou a rir. Havia pensado, naquele curto tempo, no que ela havia dito. Estava na hora de se confessar. Era um dever, uma promessa que ele tinha com eles mesmo. Ele tinha que fazer isso. Ele tinha que ir pra prisão.

- Ah... - disse, por fim - agora que eu estava me divertindo?

Ficou ali sentado, por horas, até a polícia chegar.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Amor Incondicional

A cidade estava deserta. Ninguém queria estar lá.

Uma única alma andava por aquelas ruas. Andava rumo à colina, cuja principal característica era o enorme salgueiro em seu topo. Reinava imponente sobre aquela terra silenciosa.

Essa alma tinha nome, e mais importante que isso, um objetivo. Matt tinha um encontro. Precisava chegar àquela colina a qualquer custo.

Ele iria gostar dela? Matt tinha certeza que sim. Tinha certeza de que ela seria a coisa mais bela que ele já havia visto.

Andava com a esperança que um inocente amante tem.

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As ruas desertas estavam cobertas de cartazes e pichações. Matt só lia as pichações porque os cartazes eram sempre os mesmos. Eles o irritavam. As pichações, nem tanto. Mas algumas vezes, elas caluniavam a amada de Matt.

"SAIAM DAQUI", "É O FIM", "DEMOS O FORA ANTES DELA CHEGAR". Essas enraiveciam Matt. Como ousavam falar isso dela se nunca a haviam visto? Por que não dar uma chance a ela? Matt estava confuso.

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Agora, Matt está sentado no topo da colina, encostado no salgueiro. Podia ver o crepúsculo no horizonte. Era tão simples e tão belo que Matt se perguntou o por quê dele nunca ter parado para observá-lo antes. Perguntou-se se ela iria gostar dele.

Estava ansioso. Ela chegaria a qualquer momento. O que Matt diria? O que ele faria? Não interessa. Pensaria nisso quando ela chegasse.

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Finalmente. Lá estava ela, se erguendo no horizonte.

Quando ela apareceu, assustou um pouco ele. Ela estava furiosa! Por que? Será que ela não gostou dele? Matt tremeu um pouco, mas se levantou.

Agora, ela tinha deixado sua fúria de lado, Tinha pensado melhor? Talvez. Talvez ela quisesse dar uma chance a Matt, a mesma chance que os habitantes daquela cidade se recusaram a dar a ela. Ela estava mais calma.

Estava indo na direção de Matt. Ele sentiu algo estranho quando viu a velocidade que ela se aproximava. Não era comum. Ele achava que ela estava apaixonada por ele. Óbvio! Única explicação!

Ela continuava vindo. Varria tudo que tentava por-se entre ela e ele. Estava perto.

Matt abriu os braços e sorriu. Estava pronto para ser abraçado por sua amada.

Quando se encostaram, foi o ápice da alegria de Matt. Estavam juntos finalmente.

Podia morrer agora mesmo, ele nem se importava. Ele estava feliz. Feliz naquele momento que mesmo tendo sido tão rápido, parecia durar a eternidade.


Inspirado no conto todas as perguntas que nunca tiveram resposta, por Thomas Hanauer.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

"Esta é para os registros..."

Você é um mentiroso, caro leitor. E não negue, sabe que eu tenho razão. Eu também sou um. A história está cheia deles. Te desafio a pegar o livro de história agora e ver quantos mentirosos tu consegue achar!

Antes que venha com "nenhum", saiba que cada única pessoa presente nesse livro é uma vencedora. Os perdedores são vilonizados. "A História é escrita pelos vencedores". Hitler era um ser humano, como eu ou você. Ele tinha suas opiniões, seu modo de pensar e hoje o vemos como um vilão. E se Hitler tivesse ganho a guerra? Provavelmente teriamos o Tio Sam como vilão, não? O maligno Tio Sam que tentou impedir que Hitler purificasse a Terra do mal que a assola. Mas Hitler era o mentiroso que não conseguiu escrever sua verdade e por causa disso hoje o vemos como vilão e como ele realmente era. Mas não vemos nossos heróis assim, hoje, vemos? Nós vemos os mentirosos que escreveram a sua verdade no livro de história assim?

Não. Não vemos. E talvez nunca veremos. E quando eu digo "veremos" me refiro a toda a população mundial. Grande escala, não eu e você. Quem consegue se registrar como herói dificilmente pode ser visto como vilão. Está protegido. Por que o mundo como vemos, e exatamente como o vemos, só é possível por causa do mentiroso ganhador. Mesmo que quiséssemos não veriamos.

Verdade, algumas pessoas conseguem ver através dos vitoriosos. Poucas pessoas. Não o suficiente pra mudar os livros de história.

Você é um mentiroso, caro leitor. Eu também. Todos somos.

Todos somos mentirosos que querem escrever as suas próprias verdades na História. De um modo triste para alguns e banal para outros, para haver ganhadores tem de existir perdedores. Isso ai. Se você quer ser um vencedor, vai ter que esmagar alguém vez ou outra. Vai ter que esquecer o que Walt Disney te ensinou sobre ser bonzinho, ser uma pessoa boa, e ver a realidade como ela realmente é.

Seja um vencedor leitor. E se um dia tiver que me ganhar, me vencer, não me poupe. Você não sabe se eu te pouparia ou não.

Price: "Esta é para os registros. História é escrita pelo vencedor. História está cheia de mentirosos. Se ele viver e nós morrermos, a verdade dele se torna escrita - e a nossa está perdida. Shepherd será um herói. Porque tudo o que você precisa para mudar o mundo é uma boa mentira e um rio de sangue. Ele está prestes a realizar o maior truque que um mentiroso já realizou na história. A verdade dele será a verdade. Mas apenas se ele viver, e nós morrermos".

Call of Duty: Modern Warfare 2

domingo, 3 de janeiro de 2010

Porta

Tarde da noite e Jack se revirava na cama. Ele sabia o que ia acontecer. A qualquer minuto iria acontecer. Já tinha acontecido outras vezes e Jack já até se acostumara. Era, na verdade, a sexta noite consecutiva que aquilo acontecia. Era duas e pouco da manhã. A qualquer minuto...

*toc toc toc*


Pronto. Acontecia de novo. Jack pacientemente se levantou. O barulho persistia.

- Já vai! Já vai!

Pela sexta vez, Jack abria a porta de seu apartamento naquele mesmo horário. Novamente, ninguém se encontrava ali no corredor. Fechou a porta. Não demorou muito e mais uma vez alguém batia à porta. Abriu. Ninguém. E Jack voltou a sua cama, lutando para dormir em meio àquele barulho irritante.

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- Eu já não sei mais o que faço, cara! - resmungou Jack, bem alto. - Toda a noite! Cada única noite, eu ouço alguém bater na minha porta e sempre é ninguém.

- Oras, Jack! - disse aquele seu velho amigo de infância. - Talvez esteja com problema no ouvido, só isso. Consulte esse doutor aqui, ele vai te ajudar.

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- Nada.

- Nada?

- Nada. - voltou a repetir o médico. - O senhor não tem nenhum problema no ouvido.

- Mas doutor, posso jurar que ouço alguém bater na minha porta...

- Filho. - o homem não tinha idade para ser seu pai. Talvez seu irmão uns 15 anos mais velho. - Talvez seja psicológico. Consulte um terapeuta. Se eu não posso te ajudar, talvez ele possa.

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- ... e essa é toda a história, doutora. E eu não sei mais o que fazer!
A Dra. Olkes estava pacientemente observando Jack por trás de seus óculos retangulares. Ela não ficava bem com eles, mas Jack não se atreveu a dizer isso pra ela.

- Você disse que a porta bate dentro de sua cabeça não? E já tentou abrir essa porta?

- Já. E acho que já te disse isso.

- Sim, mas se a porta só é batida dentro de sua mente, porque não tenta abrir ela dentro de sua mente?

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De novo, tarde da noite. Mas desta vez, Jack estava bem acordado. Estava ansioso para resolver aquilo de vez. Durante uma semana e alguns dias a porta não o deixava dormir. Agora iria resolver isso de qualquer forma. Era pouco mais das duas. Já ia acontecer.

*toctoctoc*

Era agora. Jack se jogou em sua cama e começou a imaginar. Imaginou seu apartamento, móveis e, claro, a porta. Imaginou ele indo abrir ela. Pôs a mão na maçaneta. Girou a maçaneta e abriu a porta.

- Bem, já era hora!- disse a figura vestida de preto e de pele branca a sua frente.

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- Tá. Me deixe ver se entendi bem, - disse Jack. Ambos estavam sentados de forma imaginária nas poltronas imaginárias da sala de estar imaginária de Jack. Era difícil pra ele aceitar que aquilo tudo ocorria dentro de sua cabeça. Era tudo tão real, tão... vívido. - você é um agente secreto do governo e isso que está acontecendo comigo faz parte de um projeto ultra-secreto sendo desenvolvido. É isso?

- Sim. - o homem de preto tinha a face insondável, mas Jack tinha certeza de que ele não estava brincando. Era difícil brincar numa situação daquelas.

- Tá, mas...

- Por que você? - completou a frase de Jack - Não é apenas você. São várias pessoas. Muitas pessoas. O processo de seleção não teve nada de especial. São pessoas escolhidas aleatoriamente simplesmente por serem cidadãos americanos. E peço que não conte a ninguém sobre isto. É nosso segredinho Jack, meu e seu. E se me der licença, preciso ir.

O homem de preto estalou os dedos e Jack abriu os olhos. Estava em sua cama, do jeito que havia se jogado antes.

Pensou em tudo aquilo que havia conversado com o agente. Era real. Era imaginariamente real.
Ele se lembrava de cada palavra.

Iria acreditar naquilo?

Impossível.

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- A primeira reação foi vir te contar doutora. Desobedeci ele, eu sei disso. Mas achei que seria melhor te contar.

A Dra. Olkes estava um pouco alegre por Jack ter vindo contar a ela. Sabia que um homem que ouvia, e até via, coisas devia ter a responsabilidade de procurar ajuda. Não acreditava no agente secreto. Nem um pouco.

- É muito interessante, Jack. Acreditou nessa história?

- B-bom... é uma explicação... e não parece completamente impossível.

A cara da doutora mudou. Ela tomou uma postura séria agora.

- O governo dos Estados Unidos testando um projeto ultra-secreto, Jack? Como pôde acreditar nisso? - a médica esperou alguma reação mas Jack permaneceu quieto - Acho que sei o que está havendo com você, é o seu subconsciente Jack. Seu subconsciente está tentando se comunicar com você... apenas seu subconsciente.

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Noite de novo e Jack se preparava para mais uma conversa com o estranho. Deitou na cama e esperou a coisa acontecer naturalmente. Naturalmente a porta foi batida, naturalmente havia alguém lá, naturalmente ele abriu a porta. Naturalmente, o estranho estava muito descontente com ele.

- Estou decepcionado, Jack. Era nosso segredo.

- Não acredito nisso. Não acredito em você! Você é apenas meu subconsciente!

- Eu sou seu subconsciente? Óbvio que eu sou! Eu não me chamo James K. Henderson, não tenho um pai que morreu de câncer a um mês, não tenho esposa, não tenho o meu maldito emprego no qual eu tenho que lidar com imbecis como você! Eu sou simplesmente a merda da sua mente!

Jack se manteve em silêncio

- Te contato em breve. - deu as costas e foi embora, e com a batida da porta, os olhos de Jack se abriram.

Não sabia mais em quem acreditar. Na doutora de carne-e-osso ou no estranho imaginário.

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- Mas isso é muito bom! - foi o que a doutora disse. - a reação de raiva do homem é simplesmente a sua mente reagindo por ter sido exposta! Estamos progredindo!

- Tá, mas e agora?

- Agora é simples. Faça ela acreditar que ela não é o agente secreto.

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- Como assim não sou real?- o homem de preto parecia ofendido.

- Não é real. Eu sei disso. Pesquisei.

- Ok, então acho que posso te contar a verdade...

Jack tirou aquela face de eu venci de seu rosto e decidiu prestar atenção. Estava interessado no que sua suposta mente tinha a dizer.

- ... a verdade é que sou um inventor. Meu invento é capaz de projetar a mim mesmo na mente das outras pessoas. O governo me mataria se soubesse que inventei isso! E roubaria o invento, é claro. Você é minha primeira cobaia!

- Não pode crer que eu vá acreditar em você! Acredito tanto nessa história quando na outra!

Os olhos do homem se arreagalaram. Tinha uma expressão séria, agora. Mais séria que a de antes. Franziu o rosto e arreganhou seus dentes, como um animal. Sua ira estava claramente estampada em sua face.

- Seu imbecil! Um imbecil é o que você é! Nunca faz nada direito! Foi um menino idiota e agora é um homem imbecil! - o homem, então, fecha a porta na cara de Jack. Não havia sentado dessa vez. Deixou Jack pasmo.

Ele reconhecia o homem agora.

Conhecia ele a um bom tempo.

Era seu falecido pai.

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- Jack, será possível que não entende?- a terapeuta estava séria, impassível. - É a sua mente, seu subconscinte. Ele tem acesso a todas as suas memórias. Tudo o que você sabe, ele sabe. Ele pode parecer e soar como qualquer um que conheça.

Naquele dia, Jack voltou andando pra casa. Pensava muito sobre o assunto. Estava completamente dividido.

E se ela estiver errada?

Jack não podia mais viver com a dúvida.

Ela o mataria se continuasse.

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Já fazia um bom tempo que a porta não batia, alguns dias na verdade. Jack estava nervoso, não só pela porta, mas pela visita que esperava.

*toc toc toc*

Jack deu um pulo de sua poltrona. Não sabia se era a porta imaginária ou a porta real que estava batendo. Olhou pela janela, percebeu que ainda era de dia e lembrou-se da visita que esperava. Abriu a porta com certo alívio de ter certeza de que não era um homem de preto. Era uma figura de preto, mas não era o homem. Era uma mulher. Pequena, morena, franjinha, pele branca. Entrou logo no apartamento, mesmo não tendo sido convidada a entrar por Jack. Era a visita, presumiu que deveria entrar, oras!

- Então... ahm... Jack? Jack, certo?- não deu tempo dele responder- Disse que se comunicava com se pai não é?

- É, deixe-me lhe explicar a situação...

Não demorou muito. A médium, ou especialista, chame como quiser, prestava atenção nele. Abriu um sorriso quando terminou.

- O seu caso é muito simples, Jack. É apenas um...

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- Espírito preso no nosso mundo, Jack?- a doutora estava claramente indignada. Jack não sabia se era por ele não ter creditado nela ou ele ter acreditado na baixinha. Provavelmente, ambas as coisas.- Não, não, não... estamos regredindo Jack, estamos cada vez mais distantes.

- É um espírito que tem assuntos inacabados no nosso mundo- Jack tentava explicar da maneira que pudesse, mas observou bem a expressão de sua terapeuta- ... não acredita numa única palavra do que digo, não é?

-Use a cabeça, Jack. Acha que eu acreditaria?

Jack ficou cabisbaixo. Encarava uma mancha no chão quando murmurou:

- Acho que não.

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Jack estava deitado. Esperava a porta bater agora para o que seria decisivo, tinha toda a certeza. Aguardava ansiosamente o tempo passar.

*toc toc toc*

E lá ia Jack. Abriu a porta e quem começou a falar agora era o homem de preto.

- Jack, Jack, Jack, meu filho... - o homem tinha uma expressão zombeteira no rosto. Jack tentava manter a expressão impassível que sua terapeuta tinha, mas estava se saindo mal nisso. - Um merda! Um casamento que não deu certo! Dois filhos que acham que você é o vilão da história! Um emprego horrível! E ainda por cima, pra completar, tem que pagar pensão para aquela vadia com quem havia se casado... pobre Jack. Sentiria pena de ti se não soubesse o merda que você é!

- Não engulo! Você não é meu pai! Não é! Espíritos não existem!

O silêncio tomou conta daquela sala imaginária. Jack sentiu um calafrio. O homem de preto estava com uma postura mais séria agora.

- Então, Jack... quem sou eu?

- Eu não sei. Mas sei que você não é meu pai.

Agora ele sabia disso.

-Eu te conto a verdade então Jack. A verdade nua e crua, você quer ela? Está preparado para ela?

- Por favor...

Jack se sentia fraco.

- A verdade é que... sou um agente secreto do governo dos Estados...

- Mentira! Pare com isso!- interrompeu Jack.

- Ok. Eu sou um inventor, meu invento...

- Pare com isso!

- Tá. Jack, Eu sou seu pai!

- Mentira!

- Certo. Eu sou apenas um espírito que...

- Não!

- Sou alienígena que está se comunicando com você de outro planeta!

- Pelo amor de Deus... quem é você?

Jack estava exausto e confuso. Nunca estivera assim em toda sua vida. Nem quando Lisa e os meninos o deixaram ou quando seu pai morreu. Era uma sensação completamente nova para ele. E ele não aguentava mais senti-la. Não sabia o quanto mais iria suportar.

- Ok, Jack... a verdade é para poucos. Mas se quer mesmo saber, aposto até que você já até sabe, eu lhe digo. Eu tenho muitos nomes. O meu preferido é Príncipe das Trevas. O que acha disso, Jack? Não é uma palhaçada?!

O homem agora estava rindo alto. Gargalhava. Abriu os braços e começou a girar. Jack se sentiu tonto de repente. Não acreditava no que via.

- Príncipe das Trevas, Senhor do Mal, Lúcifer, o Diabo... não é uma palhaçada, Jack? NÃO É UMA PALHAÇADA?

Jack estava aterrorizado. Abria e fechava os olhos. Queria sair dali, de dentro de sua imaginação, de dentro de sua cabeça. Não conseguia. Por mais que quisesse, agora estava preso ali, com aquele homem, com o demônio, com sabe lá Deus quem ele fosse.

- Não adianta, Jack! Não vai acordar agora! Você só acorda quando eu quero. E eu não quero que você se vá Jack. Eu quero te matar. Eu vou te matar agora, Jack. Ouviu, Jack? Me ouviu, Jack?

Jack se mantinha imóvel. O estranho não avançava contra ele nem tomava um postura hostil. Jack estava aterrorizado simplesmente pelo o que ele dizia.

- NÃO! Isso é impossível!

- Quem sou eu então, Jack? Quem sou eu? Um agente? Um Inventor? Papai, espírito, alienígena? O demônio? Quem sou eu, Jack?

- Eu não sei! Eu só quero sair desse inferno!

O lugar ficava cada vez menor. Jack estava encolhido num canto. Chorava como uma criança. Queria sair dali a qualquer custo.

- A porta da frente é serventia da casa!

E Jack se foi porta adentro. A porta fechou atrás de si e deixou o estranho ali. Sozinho. No espaço que, agora, era dele.

-----

*toc toc toc*

Jack estava sentado numa das poltronas de sua casa agora. Estava pacientemente anotando coisas em um caderninho e falando alto consigo mesmo.

- Primeiro de tudo, nem mais um centavo para aquela vadia e para aqueles sanguessugas. Depois, vou sair daquele emprego, não sem antes dar um murro na cara daquele chefe! Ah, se vou!

*toc toc toc*

Jack fechou seus olhos e imaginou aquele velho lugar. Se aproximou da porta, mas ao invés de abri-la encostou o ouvido e perguntou:

- Quem é?

- Por favor, me deixe voltar!

- Não, não, não... é minha vez agora. Minha vez de viver nossa vida. A vida que você tanto ferrou. Vai ter que ficar ai, agora, Jack. Para sempre. E além do mais, quer que eu o deixe passar depois de todo aquele trabalho que passei pra fazer você ultrapassar essa maldita porta por livre e espontânea vontadade? Negativo! Nunca, Jack! Até nunca mais!

Trancou a porta e jogou a chave fora. Pôs algumas das pernas das cadeiras no fogão e ateou fogo no lugar. Não precisava mais daquele lugar imaginário.

Abriu os olhos. Olhou pro seu caderninho e sorriu. Voltou a falar consigo mesmo.

- Ha!- disse, com um sorriso.- E aquela maldita doutora filha-da-mãe estava certa o tempo todo!

E voltou a escrever.

Um blog...

... pra começar o ano bem, quem sabe?

Vou destinar esse blog a pensamentos, contos e sabe-la-Deus o que mais me der na mente.