quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Cinza

Nicole acordou, mas manteve seus olhos fechados.

Ela não se lembrava muito bem das coisas. Não se lembrava do que havia acontecido, do porquê dela estar ali onde estava.

Sentada, mãos atadas em suas costas. Vendada. Boca cerrada, pela simples vontade de Nicole de ficar calada. Nada a impedia. Seja lá quem a havia posto naquela situação, não se importava com o silêncio dela. Não custava nada tentar.

- So-socorro!

Suas palavras ecoaram longe, o que a fez perceber que estava em um lugar grande.

- Socorro!

Uma porta se abriu, Nicole parou mais um grito que preparava-se pra sair e virou sua cabeça na direção do barulho que havia escutado.

- Quem está aí?

Ela agora ouvia passos. Passos vindos em sua direção. Quem era? O salvador ou a perdição? A resposta não importava, contanto que ela viesse.

Os passos pararam na frente de Nicole.

- Quem é você?

- Olá, Nicole. Você não sabe quem eu sou, mas eu sei quem você é. E você não é uma boa pessoa, Nicole. Com certeza, não é.

- Mas eu nunca fiz nada de errado!

- Talvez.

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Arquivo de Patrick Felcon, doutor em psiquiatria.
Paciente: X
Gravação #1

-
Eu sou o Dr. Felcon e estou aguardando a chegada de meu paciente. Ahm... ele parece não ter nenhuma identificação e foi acusado de dois crimes de homicídio e tortura. Parece ter confessado mais, mas não houve provas. Ele tem a estatura média, cabelos negros, olhos igualmente pretos. Físico em excelente condições. Não há lesões ou qualquer dano aparente, além de um cicatriz visível em seu pescoço, perto da jugular. Parece gostar da cor branca e... ah, ele chegou.

*Barulho de porta se abrindo, o som evidencia que uma ou duas pessoas carregam outra para dentro e a fazem sentar.*

- Olá. Tem algum nome pelo qual eu possa te chamar?

*Suspiro.*

- West. Pode me chamar de West.

- West? Esse é seu nome?

- Não.

- Ahm... pois bem, West. Como você está?

- Vivo. O senhor?

- Estou bem, bem. Sabe por que está aqui?

- O senhor quer me entender.

- Interessante escolha de palavras, West. Mas eu não quero apenas te "entender" eu quero te fazer melhor.

- Por que?

- Por que esse é o meu trabalho, fazer pessoas como você melhores, mentalmente.

- Melhores mentalmente ou melhores pros padrões da sociedade?

- Vejo que me entende, isso pode facilitar as coisas.

- Eu estou bem, doutor. Se a sociedade não gosta do quão bem estou, ela que venha e me prenda. Ou será que já fizeram isso?

- Vejo que não vai colaborar, certo?

- Acho que posso dizer o mesmo.

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Com a venda retirada, Nicole olhava da cabeça aos pés o seu sequestrador. Não era muito alto, era moreno. Era bonito, até.

- Trabalhou a vida inteira, atropelou pessoas, enganou algumas e mentiu pra mim. Você pode nunca ter cometido algum crime, mas isso não quer dizer que nunca fez alguma coisa errada.

Ele se aproximou um pouco mais do rosto dela. Seus olhos eram quase pretos, tom que nunca antes ela havia visto. Estava assustada.

- Não se importa nem um pouquinho com as pessoas não é? Nem com aquelas ao seu redor. Namora um cara prestes a ganhar um herança milionária. Costuma trair o cara. Nunca teve muitos amigos, não parece se importar. Problemas na faculdade, culpou colega. Acreditaram, expulsaram a pessoa ao invés de ti. Nada bom. Nada bom, mesmo. Você parece ser muito egoísta, pensa apenas em si mesma. Além da conta do que uma pessoa normal faria. Acredito que tenha algum tipo de psicopatia, talvez. O fato é que eu não gosto disso, Nick. Não gosto de você ficar atrapalhando a vida de outros, só se importando com a sua. Se vai passar a vida toda fazendo absolutamente nada, vivendo sua vida como se tivesse sido pré-programada e ainda estragando a vida de outros, é melhor que não viva. Não me leve a mal, Nicole, mas eu gosto disso. Gosto de... "limpar" o planeta de escória como você.

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Arquivo de Patrick Felcon, doutor em psiquiatria.
Paciente: X
Gravação #4

- Aqui é o Dr. Felcon e estou nesse momento prestes a começar mais uma sessão com o paciente sem nome. Acredito que nosso progresso esteja indo muito devagar. Parece ter ideias fixas. Tem uma lábia e uma capacidade de persuasão incríveis. Há alguns dias ele conversou com outro presidiário. O homem parece abalado. Guardo o tema para outra conversa. Ele chegou.

*Barulho de porta, uma única pessoa entra, puxa a cadeira e senta*

- Caro... perdão, como deveria chamá-lo mesmo?

-É Holmes.

- Como o detetive?

- Não... sim, como o detetive.

- Certo. Holmes, hoje vamos falar um pouco mais da sua infância. Como eram seus pais?

*risos*

- Meus pais, doutor? O que você quer saber sobre eles?

- Como eles te tratavam, como era o lugar onde vocês moravam.

- Bom, meus pais sempre me trataram muito bem. Compravam tudo o que eu queria, cuidavam de mim, se preocupavam... ou não. Me tratavam mal. Nem sei como consegui sobreviver.

-Como assim? Não consegue se lembrar direito do seu passado?

- Não é isso, doutor. É que se eu vou ter um passado, eu prefiro que eu possa escolher!

- Por que esse sorriso, agora? Será possível que não vai colaborar?

- Quer colaboração? Certo, doutor, vai haver colaboração. Me pergunte qualquer coisa!

- Ok. Pergunta simples. O que você acha das pessoas?

- Bando de robôs imbecis, não posso confiar neles.

- Acho que entendo o por quê de você achar elas robôs imbecis, já falamos isso em outra sessão, mas por que não confiar neles?

- As pessoas são muito peculiares. Você vê, quem geralmente erra, raramente perdoa. Não interessa quantas vezes você diga "tá tudo bem John, eu entendo" ou "eu te perdoo, Mary". Bem, John e Mary podem muito bem não te perdoar amanhã e no fim, eles estão sozinhos. Nós estamos sozinhos. Não podemos confiar em niguém, ou se confiamos, não podemos errar. Me entende, doutor?

- Me parece que essa pessoa é real.

- Mary era bem real. Pena que está morta agora. Não se preocupe doutor, eu não a matei.

- E o que a matou?

- Morreu quando percebeu o que havia se tornado.

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Nicole acordava cansada. Ao longo de 3 dias, o misterioso sequestrador a manteve com fome. Toda vez que este fazia uma refeição, a fazia na frente dela. A tortura era psicológica. A fome não era. Ouviu o estranho vindo de novo.

- O que você quer agora?

O homem puxou uma cadeira, a mesma que ele usava para comer, e se sentou na frente dela.

- Eu não sei, tenho pensado um pouco sobre você...

Nicole abriu um sorriso débil, mas largo. O fez parecer sinistro. Ela não tinha medo dele. Podia rir dele se soubesse o que ele faria se ela risse. Ele era imprevisível.

- Vai dizer que está apaixonado por mim? Síndrome de Estocolmo às avessas? Me ama?

Ele abriu um pequeno e simples sorriso com o canto da boca. Nicole desfez seu sorriso. A expressão no rosto dele era impassível.

Nicole era bonita. Olhos negros, cabelos castanhos e inteligente. Ela entendia, mas não do mesmo jeito dele.

- Amor é quando seu cérebro decide liberar endorfina quando se está perto de uma pessoa. Quando ele decide que você fará tudo por ela porque é ela com quem você deve copular, continuar a espécie. Não tem magia. Não existe "amor verdadeiro". Só tem o seu instinto animal te fazendo ser um animal. Nunca vai vir um cavaleiro galante te tirar da torre e matar o seu dragão, princesa. Romances assim não existem fora dos livros e dos filmes. Eu estava pensando em te poupar, mas acabei de ter uma ideia melhor. Entendo que sejas muito inteligente e quero por isso aprova.

Dito isso, foi buscar sua comida.

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Arquivo de Patrick Felcon, doutor em psiquiatria.
Paciente: X
Gravação #
9

- Aqui é o Dr. Felcon e eu não sei quanto tempo ainda consigo tratar ele. A maioria das pessoas que eu trato são pessoas que não entendem, pessoa que podem ser controladas dadas as circunstâncias. Ele não. Ele entende tudo perfeitamente. E faz questão de mostrar que não dá a mínima. Ele me assusta. Última semana a polícia precisou dele para algo. Ele voltou feliz. Me pergunto o que fizeram. Também na última semana, a única pessoa com quem ele havia conversado se matou. Coincidência? Eu sei que não. Ele atende por alias correspondentes a psicopatas famosos: Rosemary West, até H. H. Holmes. Eu vou encerrar isso hoje. Aí está ele.

- Olá, doutor.

*Suspiro, doutor tem sua voz alterada*

- Isso termina hoje!

- Vai atirar em mim doutor?

- Você é perigoso demais para estar vivo!

- Qualé, doutor. Abaixa essa arma. Abaixa essa arma e vá se deitar no seu sofá confortável. Ele fica na sua sala de estar em conjunto com sala de janta e cozinha. Tudo muito caro. Seus filhos são adoráveis, doutor. O pequeno até é meio espertinho. Chora pra ganhar atenção. A grandona já é burra feito uma porta. Ela está se envolvendo com drogas, sabia disso doutor?

- CALA A BOCA!

*A porta é aberta, homens entram apressados*

- Então é isso, até o homem mais correto pode se transformar num assassino dadas as circunstâncias? Você é como eu, doutor.

- Argh!

*Bang bang*

- O mais irônico disso é que eu poderia apostar que esses homens sempre deteram o paciente e não o doutor. É até engraçado.

*barulhos, alguém é arrastado. A porta daquele quarto se fecha. Silêncio*

- E você se esqueceu da pergunta mais importante: o porquê de eu gostar de branco.

*Risos*

- Agora que eu estava me divertindo?

Fim das gravações de Patrick Felcon.

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7 dias e Nicole mal sabia como estava viva. Quando ele tirou a sua venda, ela se deparou com um frango assado, no chão. Nada demais, mas parecia um sonho. Do lado dele, havia uma garfo e uma faca. Nicole não pensou duas vezes, se jogou sobre o frango e o devorou com as mãos cruas e humanas. Quando parou de devorar seu prato olhou pra cima e viu se sequestrador, em branco.

- Então é assim, Nicole. Dadas as circunstâncias, até o mais inteligente dos homens pode se tornar um animal.

- Por que? POR QUE FAZES ISSO?

- Por que é necessário. E eu gosto.

- Um dia... - ela agarrou a faca com discrição, não o suficiente pra escapar dos olhos atentos dele - você vai pagar pelo o que faz. Todo mundo paga. Um dia ou outro você vai para a prisão por que quer, por que a prisão é o confessionário de um pecador como você.

Ele a ouvia atentamente, entendia ela e, acima de tudo, sabia que estava certa. Sabia, também, que ela só o queria o distrair e que ela não ia deixar que ele vivesse.

Nicole se levanto e desferiu um golpe de faca a altura do pescoço dele. Passou perto e fez um pequeno corte em seu pescoço. Ele a segurou quando ela tentou um segundo golpe e a desarmou. Jogou ela no chão e parou ali em pé. Olhava pra figura dela, indefesa e fraca no chão. Foi até a porta e a abriu.

- Você está livre.

Nicole não pensou duas vezes, disparou até a porta e deixou seu sequestrador para trás.

Ele se sentou na cadeira que ela estava sentada e começou a rir. Havia pensado, naquele curto tempo, no que ela havia dito. Estava na hora de se confessar. Era um dever, uma promessa que ele tinha com eles mesmo. Ele tinha que fazer isso. Ele tinha que ir pra prisão.

- Ah... - disse, por fim - agora que eu estava me divertindo?

Ficou ali sentado, por horas, até a polícia chegar.

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