segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Preto

Quando David entrou no apartamento, a única fonte de iluminação que existia ali era a luz do luar.

Lá fora, a lua cheia se mantinha imponente sobre o céu. Rainha cercada de pequenos súditos, suas estrelas. A luz invadia o recinto e parecia saber o que iluminar para dar um tom dramático, porém simples, ao lugar.

David sentiu o peso de seu sobretudo em seus ombros e o tirou. Sentiu que, em sua mão, não era mais tão pesado. O jogou no sofá e se dirigiu à porta do extremo oposto do apartamento. Podia ver a luz se esgueirando ao redor da saída, como se aquele simples pedaço de madeira pudesse conter uma claridade quase que divina.

Abriu a porta sem medo.

O ambiente era regado por uma música agradável. O som parecia dar ao ambiente uma forma, ou se adaptar a ela. Perto da janela havia um homem. Não muito alto, estatura média. Pintava um quadro cantando. David não pode deixar de perceber que, da cabeça aos pés, a figura estava vestida com roupas brancas. Trajes simples, não muito caros. Esse fato preocupou um pouco David.

Com cautela, como se fosse tocar em porcelana, o intruso deu pequenas batidas na porta.

- Senhor?

- Blue moon, you saw me standing alone...

David deu batidas um pouco mais fortes na porta e aumento o tom de sua voz:

- Senhor!

- Without a dream in my heart...

Com um pouco de irritação agora, tentou mais uma vez, mais alto:

- SENHOR!

O homem parou de pintar e, para David, a música parecia ter parado. O pintor sorriu e ofereceu uma das duas poltronas acolchoadas. Sentou na outra e observou o intruso por um tempo. Decidiu começar a falar, já que David não parecia querer começar a conversa.

- Olá, detetive. Você sabe por que está aqui?

O outro homem sentiu o gelo e a incerteza dentro de si se despedaçarem. Aquelas simples palavras do homem de branco eram suaves e o ofereciam hospitalidade.

- Creio que tenha me chamado para investigar algo: alguma pessoa desaparecida; namorada infiel; algum suspeito de algo, como sempre. - David se sentiu mais livre agora, piscou para o homem e continuou - Talvez eu até tenha que prender alguém.

- É verdade, detetive.

- Então o que vai ser? Quem eu vou ter que pegar?

- Eu quero, detetive... que você investigue e arrenje provas contra... - Pareceu ter perdido a palavra que ia falar a seguir, ou simplesmente não a encontrava.

-"Contra"?

- Contra mim! - disse, com um sorriso simples, mas cínico.

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Mãe ignorância, irmã benção e prima dúvida

Ontem eu decidi caminhar pela vizinhança. Sentir um pouco o sol. Faz bem. Do nada, uma cena atraiu minha atenção: duas crianças, brincando no parque. Não havia nada demais mas ambas pareciam felizes.

Talvez, eu estivesse errado. Naquele duro e selvagem mundo, era difícil florescer algo como amizade. Era bonito. Fiquei ali por alguns minutos observando as crianças brincarem, até outras se juntaram. "Talvez, ignorância seja mesmo uma benção". Não foi muito depois dessas palavras que disse "talvez, sobre alguma coisa, eu tenha errado". Fiquei observando por mais alguns segundos e me virei.

Saia andando, quando ouvi um barulho e o som de choro. Uma criança havia batido na outra por algum motivo irracional. Gastei mais algum tempo observando os pais levarem seus filhos embora. Então quando o vazio tomou conta daquele parque sem crianças, resultado de um pequeno caos, eu me virei e segui meu caminho. Afinal das contas, nada é exatamente o que parece. Sorri pra mim mesmo e... gostei daquilo. Gostei de estar certo e preferi ignorar o fato de que, em algum momento, duvidei de mim mesmo.

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David teve uma reação não esperada pelo homem de branco. Ele riu. Perguntou, entre risadas se era uma brincadeira. Quando obteve a calma resposta de que não era, ele parou de rir e olhou, pálido e sério, para o homem. Essa era a reação esperada. O detetive se inclinou e sussurou:

- Sério?

- Tão sério quanto dois mais dois é igual a quatro!

- Mas por quê?

- Porque eu estou cansado! Você vê, não és a primeira pessoa a ouvir isso. Mas tem alguma coisa diferente em você, senhor... David Cameron, certo? Cameron é um bom sobrenome. Conheci um homem com esse sobrenome, uma vez. Cara legal.

- Então, ahm... eu vou ter que te investigar? Te prender?

- Ah, sim! Mas não ache que vai ser fácil, Cameron. Nunca é. Mas eu preparei uma coisa para você. Aqui.

O homem de branco estendeu a David um notebook e uma folha de papel de algum bloquinho de notas. Os únicos dizeres no papel eram: "magnum opus".

O detetive se sentiu confuso. Não entendia bem o que era aquilo e não tinha certeza se iria entender. O homem de branco parecia uma figura bem-humorada, simples. Não parecia ser capaz de matar alguém. Ao menos, não parecia. Sentiu-se curioso, com a necessidade de dizer algo:

- E como você vai me pagar?

- Com dinheiro, é claro.

- E com o perdão da palavra, senhor, mas como ganha dinheiro?

- Eu mato pessoas.

David sentiu-se estranho ao ver aquela pergunta ser respondida de uma forma tão complicada, mas ao mesmo tempo, tão simples. Mas, tomou coragem pra seguir com aquela conversa. De um modo que não deixaria seu medo interferir na conversa. Se seu cliente havia contratado ele, mesmo que para uma investgação um tanto estranha, não podia mostrar alguma hesitação.

- Como assim? - disse o detetive, com um pouco mais de firmeza em sua voz e uma mente um pouco mais lúcida.

- Cameron, enquanto existirem pessoas no mundo, alguém vai querer alguém morto. Pode ter certeza. Ponha duas pessoas desconhecidas em uma sala e logo estarão suspeitando uma da outra e eventualmente traçando planos para destruir uma a outra.

- Eu não acho. Acho que se duas pessoas estiverem em uma sala elas, em primeiro lugar, se uniriam para descobrir o que está acontecendo. A humanidade não é tão auto-destrutiva assim.

- É por isso que te contratei, Cameron. - disse, com um sorriso de satisfação no rosto - Mas entenda, você fala teoria, eu falo prática.

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Liberdade inesperada

Um tempo na prisão fez bem pra mim. É bom passar um tempo relaxando, livre de qualquer distração.

De algum modo, me tornei uma lenda entre os presidiários. Falei com um cara uma vez. Não pode aguentar o que eu disse.

Me pergunto se eu tenho esse tipo de impacto nas pessoas. Se elas me ouvissem, o que aconteceria? Elas se matariam?

Fiquei 5 anos na solitária. Minha nova psiquiatra, que substituia o antigo que tentou me matar, pareceu se maravilhar com o fato de eu ter conseguido sair de lá são. Quando me perguntou como eu havia conseguido, eu simplesmente respondi que todos somos loucos. A diferença é que eu já sabia que era.

A solitária me deu um inesperado sentimento de liberdade. Eu tive tempo para relfetir sobre o mundo a minha volta. É tudo uma grande piada. Nada mais, nada menos. Mas eu não quero que o mundo continue assim. Não quero continuar rindo do planeta. Eu preciso fazer algo para mudar o mundo, dar ao mundo a... liberdade inesperada que eu encontrei aqui.

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15 minutos depois e David tinha o notebook em colo, ali naquela salinha. O homem de branco tinha pego uma garrafa de uísque e estava calmamente bebendo ao lado do detetive.

- Nesse notebook, David, - disse, olhando para a lua através da janela. - tem tudo o que você precisa saber sobre mim. Algumas anotações que fiz ao longo do ano.

- Mas qual é a senha?

- Meu nome.

- Qual é seu nome?

- Por que quer saber? Estás louco?

- Talvez você esteja.

- Todos nós somos um pouco.

David já havia testado várias senhas, incluindo as palavras escritas no bilhete. Não obteve sucesso. Viu que horas eram e decidiu que já era hora de voltar para casa. Voltaria no dia seguinte?

- Não, eu não vou estar aqui.

- Onde vai estar?

- Pondo meu plano em ação. E, por falar nisso, é aí que sua caçada começa. Você vai ter que me encontrar e me prender. Não falhe, Cameron! Estou contando contigo.

David voltou pra casa confuso, naquele dia. Tinha o notebook embaixo dos braços e a nota em sua mente. "Magnum opus, magnum opus..." Qual era o propósito de tudo aquilo? Talvez as perguntas em sua mente, nenhuma a correta. Talvez a própria pergunta não estivesse certa.

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Fiél incredulidade

Eu acredito em nenhum Deus. Nenhum fantasma no céu que dita nossas regras de convivência e de sociedade. Eu tenho, pra isso, dois motivos:

Primeiro:
Como posso acreditar num Deus se há tantas religiões que pregam deuses diferentes? Alguns deuses ditos misericordiosos mas massacram cidades e raças inteiras, outros deuses demandam sacrifícios daquilo que eles mesmos tiveram poder para criar. Eu não entendo.

Segundo:
Olhe ao seu redor. A civilização está cometendo suicídio. Por que eu deveria acreditar em um Deus que não acredita em mim?

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O escritório de David era sua casa. Tinha um quartinho por trás de uma porta, no qual dormia. Estava bagunçado quando seu dono entrou nele. Exatamente como havia deixado. Sentou-se em sua cadeira velha e confortável e começou a pensar na senha, sem tentar. Apertou em um botão escrito "dica" e a frase: "às vezes um cigarro é apenas um cigarro" apareceu. Isso o fez pensar por alguns segundos no homem dizendo "meu nome".

Percebeu o quão simples aquilo era. Digitou "meunome" e o computador se abriu.

Havia todos os tipos de anotações ali, desde a origem do homem de branco até detalhes de seus crimes. Mas não dizia qual seria seu próximo ato, e isso interessava muito mais a Cameron do que suas anotações. Pensou no bilhete.

"Magnum opus". Passou uns 20 minutos investigando a palavra e, lá do fundo de sua mente, retirou uma única e solitária resposta.

Engoliu em seco e correu para o aeroporto.

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Origens

Todos nós temos uma origem, um momento em nossa vida que nascemos novamente para vermos o mundo de uma outra forma. Para uns vem cedo, na vida; outros, tarde. Para um grupo ainda maior, nunca vem.

O meu foi diferente de todos os outros. Eu nasci para um mundo condenado. Eu ainda lembro de tudo e duvido que esqueça.

Estava usando um pijama branco de seda que minha mãe havia me dado. Sua única ilustração era um coração onde o meu ficava. No meio dessa noite, eu ouvi um barulho. Alto e estridente. Acordei para nunca mais dormir como a mesma criança que era. Corri para o quarto de meus pais apenas para ver seus corpos destruidos pelos tiros de uma arma. Na mão do homem cuja face eu jamais vou esquecer.

Ele se virou pra mim com um sorriso simples, mas olhos atentos e debochados. Antes que pudesse apontar a arma pra mim, eu corri e me atirei sobre ele. O derrubei contra o armário. O infeliz bateu a cabeça e ficou desacordado.

Olhei para meus pais, os corpos, pelo menos e percebi o que pouca gente perceberia naquele momento. Nada mais importava. Peguei a arma e atirei contra o peito do assassino de meus pais. Não havia acertado o coração e ele, agora, gemia de dor.

Naquele exato momento eu larguei a arma e enlouqueci. Me joguei sobre o homem no chão. O tiro havia feito um belo estrago em seu peito, mas o coração batia. Comecei então a retalhar o que havia sobrado com minhas próprias mãos.

Como um animal, destrui os pulmões e as costelas daquele que havia me deixado órfão. Cheguei até o coração. Não batia mais. Com um sorriso no rosto eu o ergui ao alto.

Não era como um coração que eu via nos desenhos ou o que estava ilustrado em meu pijama. Era um coração real. Um coração como ele realmente é. Um coração real, não um coração de fantasia. Um coração real.

O esmaguei.

Me levantei e dei uma boa olhada em mim mesmo. Meus braços estavam vermelhos, como se fosse a cor de uma nova raça de violentos seres humanos. Meu pijama, branco, estava manchado também.

Naquele momento eu deixei de ver o mundo como costumava ver. Vi o mundo como quem vê o coração real, não o coracão de fantasia. O mundo então, era branco. E eu via a minha primeira cor traçada naquele mundo em que nada havia sido escrito ou desenhado. A primeira cor que joguei na grande tela era o vermelho, que aos poucos se esvaía ao preto.

Foi naquele momento que renasci.

A partir de então, o mundo era uma grande tela. Um grande branco.

E o que eu queria era torná-lo preto.

Um comentário:

  1. Muuuuito foda *-*
    Então o David Cameron é o cara da porta? :D
    aaah Bean, tu tem que escrever um livro mesmo. ^^ A trilogia aquela, sacas?
    beeijão, da tua fã número 1 :*

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