domingo, 3 de janeiro de 2010

Porta

Tarde da noite e Jack se revirava na cama. Ele sabia o que ia acontecer. A qualquer minuto iria acontecer. Já tinha acontecido outras vezes e Jack já até se acostumara. Era, na verdade, a sexta noite consecutiva que aquilo acontecia. Era duas e pouco da manhã. A qualquer minuto...

*toc toc toc*


Pronto. Acontecia de novo. Jack pacientemente se levantou. O barulho persistia.

- Já vai! Já vai!

Pela sexta vez, Jack abria a porta de seu apartamento naquele mesmo horário. Novamente, ninguém se encontrava ali no corredor. Fechou a porta. Não demorou muito e mais uma vez alguém batia à porta. Abriu. Ninguém. E Jack voltou a sua cama, lutando para dormir em meio àquele barulho irritante.

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- Eu já não sei mais o que faço, cara! - resmungou Jack, bem alto. - Toda a noite! Cada única noite, eu ouço alguém bater na minha porta e sempre é ninguém.

- Oras, Jack! - disse aquele seu velho amigo de infância. - Talvez esteja com problema no ouvido, só isso. Consulte esse doutor aqui, ele vai te ajudar.

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- Nada.

- Nada?

- Nada. - voltou a repetir o médico. - O senhor não tem nenhum problema no ouvido.

- Mas doutor, posso jurar que ouço alguém bater na minha porta...

- Filho. - o homem não tinha idade para ser seu pai. Talvez seu irmão uns 15 anos mais velho. - Talvez seja psicológico. Consulte um terapeuta. Se eu não posso te ajudar, talvez ele possa.

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- ... e essa é toda a história, doutora. E eu não sei mais o que fazer!
A Dra. Olkes estava pacientemente observando Jack por trás de seus óculos retangulares. Ela não ficava bem com eles, mas Jack não se atreveu a dizer isso pra ela.

- Você disse que a porta bate dentro de sua cabeça não? E já tentou abrir essa porta?

- Já. E acho que já te disse isso.

- Sim, mas se a porta só é batida dentro de sua mente, porque não tenta abrir ela dentro de sua mente?

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De novo, tarde da noite. Mas desta vez, Jack estava bem acordado. Estava ansioso para resolver aquilo de vez. Durante uma semana e alguns dias a porta não o deixava dormir. Agora iria resolver isso de qualquer forma. Era pouco mais das duas. Já ia acontecer.

*toctoctoc*

Era agora. Jack se jogou em sua cama e começou a imaginar. Imaginou seu apartamento, móveis e, claro, a porta. Imaginou ele indo abrir ela. Pôs a mão na maçaneta. Girou a maçaneta e abriu a porta.

- Bem, já era hora!- disse a figura vestida de preto e de pele branca a sua frente.

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- Tá. Me deixe ver se entendi bem, - disse Jack. Ambos estavam sentados de forma imaginária nas poltronas imaginárias da sala de estar imaginária de Jack. Era difícil pra ele aceitar que aquilo tudo ocorria dentro de sua cabeça. Era tudo tão real, tão... vívido. - você é um agente secreto do governo e isso que está acontecendo comigo faz parte de um projeto ultra-secreto sendo desenvolvido. É isso?

- Sim. - o homem de preto tinha a face insondável, mas Jack tinha certeza de que ele não estava brincando. Era difícil brincar numa situação daquelas.

- Tá, mas...

- Por que você? - completou a frase de Jack - Não é apenas você. São várias pessoas. Muitas pessoas. O processo de seleção não teve nada de especial. São pessoas escolhidas aleatoriamente simplesmente por serem cidadãos americanos. E peço que não conte a ninguém sobre isto. É nosso segredinho Jack, meu e seu. E se me der licença, preciso ir.

O homem de preto estalou os dedos e Jack abriu os olhos. Estava em sua cama, do jeito que havia se jogado antes.

Pensou em tudo aquilo que havia conversado com o agente. Era real. Era imaginariamente real.
Ele se lembrava de cada palavra.

Iria acreditar naquilo?

Impossível.

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- A primeira reação foi vir te contar doutora. Desobedeci ele, eu sei disso. Mas achei que seria melhor te contar.

A Dra. Olkes estava um pouco alegre por Jack ter vindo contar a ela. Sabia que um homem que ouvia, e até via, coisas devia ter a responsabilidade de procurar ajuda. Não acreditava no agente secreto. Nem um pouco.

- É muito interessante, Jack. Acreditou nessa história?

- B-bom... é uma explicação... e não parece completamente impossível.

A cara da doutora mudou. Ela tomou uma postura séria agora.

- O governo dos Estados Unidos testando um projeto ultra-secreto, Jack? Como pôde acreditar nisso? - a médica esperou alguma reação mas Jack permaneceu quieto - Acho que sei o que está havendo com você, é o seu subconsciente Jack. Seu subconsciente está tentando se comunicar com você... apenas seu subconsciente.

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Noite de novo e Jack se preparava para mais uma conversa com o estranho. Deitou na cama e esperou a coisa acontecer naturalmente. Naturalmente a porta foi batida, naturalmente havia alguém lá, naturalmente ele abriu a porta. Naturalmente, o estranho estava muito descontente com ele.

- Estou decepcionado, Jack. Era nosso segredo.

- Não acredito nisso. Não acredito em você! Você é apenas meu subconsciente!

- Eu sou seu subconsciente? Óbvio que eu sou! Eu não me chamo James K. Henderson, não tenho um pai que morreu de câncer a um mês, não tenho esposa, não tenho o meu maldito emprego no qual eu tenho que lidar com imbecis como você! Eu sou simplesmente a merda da sua mente!

Jack se manteve em silêncio

- Te contato em breve. - deu as costas e foi embora, e com a batida da porta, os olhos de Jack se abriram.

Não sabia mais em quem acreditar. Na doutora de carne-e-osso ou no estranho imaginário.

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- Mas isso é muito bom! - foi o que a doutora disse. - a reação de raiva do homem é simplesmente a sua mente reagindo por ter sido exposta! Estamos progredindo!

- Tá, mas e agora?

- Agora é simples. Faça ela acreditar que ela não é o agente secreto.

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- Como assim não sou real?- o homem de preto parecia ofendido.

- Não é real. Eu sei disso. Pesquisei.

- Ok, então acho que posso te contar a verdade...

Jack tirou aquela face de eu venci de seu rosto e decidiu prestar atenção. Estava interessado no que sua suposta mente tinha a dizer.

- ... a verdade é que sou um inventor. Meu invento é capaz de projetar a mim mesmo na mente das outras pessoas. O governo me mataria se soubesse que inventei isso! E roubaria o invento, é claro. Você é minha primeira cobaia!

- Não pode crer que eu vá acreditar em você! Acredito tanto nessa história quando na outra!

Os olhos do homem se arreagalaram. Tinha uma expressão séria, agora. Mais séria que a de antes. Franziu o rosto e arreganhou seus dentes, como um animal. Sua ira estava claramente estampada em sua face.

- Seu imbecil! Um imbecil é o que você é! Nunca faz nada direito! Foi um menino idiota e agora é um homem imbecil! - o homem, então, fecha a porta na cara de Jack. Não havia sentado dessa vez. Deixou Jack pasmo.

Ele reconhecia o homem agora.

Conhecia ele a um bom tempo.

Era seu falecido pai.

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- Jack, será possível que não entende?- a terapeuta estava séria, impassível. - É a sua mente, seu subconscinte. Ele tem acesso a todas as suas memórias. Tudo o que você sabe, ele sabe. Ele pode parecer e soar como qualquer um que conheça.

Naquele dia, Jack voltou andando pra casa. Pensava muito sobre o assunto. Estava completamente dividido.

E se ela estiver errada?

Jack não podia mais viver com a dúvida.

Ela o mataria se continuasse.

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Já fazia um bom tempo que a porta não batia, alguns dias na verdade. Jack estava nervoso, não só pela porta, mas pela visita que esperava.

*toc toc toc*

Jack deu um pulo de sua poltrona. Não sabia se era a porta imaginária ou a porta real que estava batendo. Olhou pela janela, percebeu que ainda era de dia e lembrou-se da visita que esperava. Abriu a porta com certo alívio de ter certeza de que não era um homem de preto. Era uma figura de preto, mas não era o homem. Era uma mulher. Pequena, morena, franjinha, pele branca. Entrou logo no apartamento, mesmo não tendo sido convidada a entrar por Jack. Era a visita, presumiu que deveria entrar, oras!

- Então... ahm... Jack? Jack, certo?- não deu tempo dele responder- Disse que se comunicava com se pai não é?

- É, deixe-me lhe explicar a situação...

Não demorou muito. A médium, ou especialista, chame como quiser, prestava atenção nele. Abriu um sorriso quando terminou.

- O seu caso é muito simples, Jack. É apenas um...

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- Espírito preso no nosso mundo, Jack?- a doutora estava claramente indignada. Jack não sabia se era por ele não ter creditado nela ou ele ter acreditado na baixinha. Provavelmente, ambas as coisas.- Não, não, não... estamos regredindo Jack, estamos cada vez mais distantes.

- É um espírito que tem assuntos inacabados no nosso mundo- Jack tentava explicar da maneira que pudesse, mas observou bem a expressão de sua terapeuta- ... não acredita numa única palavra do que digo, não é?

-Use a cabeça, Jack. Acha que eu acreditaria?

Jack ficou cabisbaixo. Encarava uma mancha no chão quando murmurou:

- Acho que não.

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Jack estava deitado. Esperava a porta bater agora para o que seria decisivo, tinha toda a certeza. Aguardava ansiosamente o tempo passar.

*toc toc toc*

E lá ia Jack. Abriu a porta e quem começou a falar agora era o homem de preto.

- Jack, Jack, Jack, meu filho... - o homem tinha uma expressão zombeteira no rosto. Jack tentava manter a expressão impassível que sua terapeuta tinha, mas estava se saindo mal nisso. - Um merda! Um casamento que não deu certo! Dois filhos que acham que você é o vilão da história! Um emprego horrível! E ainda por cima, pra completar, tem que pagar pensão para aquela vadia com quem havia se casado... pobre Jack. Sentiria pena de ti se não soubesse o merda que você é!

- Não engulo! Você não é meu pai! Não é! Espíritos não existem!

O silêncio tomou conta daquela sala imaginária. Jack sentiu um calafrio. O homem de preto estava com uma postura mais séria agora.

- Então, Jack... quem sou eu?

- Eu não sei. Mas sei que você não é meu pai.

Agora ele sabia disso.

-Eu te conto a verdade então Jack. A verdade nua e crua, você quer ela? Está preparado para ela?

- Por favor...

Jack se sentia fraco.

- A verdade é que... sou um agente secreto do governo dos Estados...

- Mentira! Pare com isso!- interrompeu Jack.

- Ok. Eu sou um inventor, meu invento...

- Pare com isso!

- Tá. Jack, Eu sou seu pai!

- Mentira!

- Certo. Eu sou apenas um espírito que...

- Não!

- Sou alienígena que está se comunicando com você de outro planeta!

- Pelo amor de Deus... quem é você?

Jack estava exausto e confuso. Nunca estivera assim em toda sua vida. Nem quando Lisa e os meninos o deixaram ou quando seu pai morreu. Era uma sensação completamente nova para ele. E ele não aguentava mais senti-la. Não sabia o quanto mais iria suportar.

- Ok, Jack... a verdade é para poucos. Mas se quer mesmo saber, aposto até que você já até sabe, eu lhe digo. Eu tenho muitos nomes. O meu preferido é Príncipe das Trevas. O que acha disso, Jack? Não é uma palhaçada?!

O homem agora estava rindo alto. Gargalhava. Abriu os braços e começou a girar. Jack se sentiu tonto de repente. Não acreditava no que via.

- Príncipe das Trevas, Senhor do Mal, Lúcifer, o Diabo... não é uma palhaçada, Jack? NÃO É UMA PALHAÇADA?

Jack estava aterrorizado. Abria e fechava os olhos. Queria sair dali, de dentro de sua imaginação, de dentro de sua cabeça. Não conseguia. Por mais que quisesse, agora estava preso ali, com aquele homem, com o demônio, com sabe lá Deus quem ele fosse.

- Não adianta, Jack! Não vai acordar agora! Você só acorda quando eu quero. E eu não quero que você se vá Jack. Eu quero te matar. Eu vou te matar agora, Jack. Ouviu, Jack? Me ouviu, Jack?

Jack se mantinha imóvel. O estranho não avançava contra ele nem tomava um postura hostil. Jack estava aterrorizado simplesmente pelo o que ele dizia.

- NÃO! Isso é impossível!

- Quem sou eu então, Jack? Quem sou eu? Um agente? Um Inventor? Papai, espírito, alienígena? O demônio? Quem sou eu, Jack?

- Eu não sei! Eu só quero sair desse inferno!

O lugar ficava cada vez menor. Jack estava encolhido num canto. Chorava como uma criança. Queria sair dali a qualquer custo.

- A porta da frente é serventia da casa!

E Jack se foi porta adentro. A porta fechou atrás de si e deixou o estranho ali. Sozinho. No espaço que, agora, era dele.

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*toc toc toc*

Jack estava sentado numa das poltronas de sua casa agora. Estava pacientemente anotando coisas em um caderninho e falando alto consigo mesmo.

- Primeiro de tudo, nem mais um centavo para aquela vadia e para aqueles sanguessugas. Depois, vou sair daquele emprego, não sem antes dar um murro na cara daquele chefe! Ah, se vou!

*toc toc toc*

Jack fechou seus olhos e imaginou aquele velho lugar. Se aproximou da porta, mas ao invés de abri-la encostou o ouvido e perguntou:

- Quem é?

- Por favor, me deixe voltar!

- Não, não, não... é minha vez agora. Minha vez de viver nossa vida. A vida que você tanto ferrou. Vai ter que ficar ai, agora, Jack. Para sempre. E além do mais, quer que eu o deixe passar depois de todo aquele trabalho que passei pra fazer você ultrapassar essa maldita porta por livre e espontânea vontadade? Negativo! Nunca, Jack! Até nunca mais!

Trancou a porta e jogou a chave fora. Pôs algumas das pernas das cadeiras no fogão e ateou fogo no lugar. Não precisava mais daquele lugar imaginário.

Abriu os olhos. Olhou pro seu caderninho e sorriu. Voltou a falar consigo mesmo.

- Ha!- disse, com um sorriso.- E aquela maldita doutora filha-da-mãe estava certa o tempo todo!

E voltou a escrever.

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